A doutrina da justificação pela fé é considerada como a grande
verdade que a Reforma Protestante restituiu à Igreja. Lutero vivia atormentado
com o seguinte raciocínio: “Se Deus julga o homem de acordo com a sua estrita
justiça, quem poderá ser salvo?”. Em sua cela no convento de Erfurt, o monge
lutava contra os desejos de sua carne, confessava semanalmente os delitos
cometidos, flagelava o corpo e jejuava até a exaustão em busca de paz. Em certa
ocasião escreveu: “Eu era o homem mais miserável da terra. Dia e noite eram
gritos e desespero, e ninguém podia ajudar-me”1. E, foi somente após compreender a
expressão “o justo viverá pela fé” (Rm 1.17) que encontrou alívio para sua
alma:
Ao entender a justificação não como transformação, mas como uma
declaração judicial divina em nosso favor a partir tão somente da fé no
sacrifício expiatório de Cristo na cruz do Calvário por nós, o fardo sobre as
costas de Lutero finalmente caiu 2;
A
doutrina da justificação pela fé ensina, em termos gerais, que o pecador é
justificado (absolvido da condenação do pecado) unicamente pela fé na graça
divina. Assevera que a salvação é dom gratuito e imerecido de Deus aos
pecadores e que só pode ser recebida por meio da fé (Ef 2.8,9). Significa dizer
que as obras humanas não podem salvar, mas apenas a fé em Cristo por meio da
recepção da graça de Deus. Ao descrever a ação divina para nos justificar, os
termos usados na Bíblia apontam para o contexto judicial e forense. Em outras
palavras, Deus torna livres os pecadores condenados e os declara plenamente
justos e isentos de toda culpa, mediante a fé na obra de Cristo na cruz. Quanto
a esta verdade, o Novo Testamento jamais afirma que a justificação é “dia
pistin” (“em troca da fé”), mas sempre “dia pisteos” (mediante
a fé). Isto significa que a fé não é meritória, ou seja, a fé é o meio de se
receber a justificação. Deste modo, a justificação pela fé está atrelada a
graça divina:
A Bíblia deixa duas coisas bem claras. Em primeiro lugar, não é
por causa de nenhuma boa obra de nossa parte. Realmente, “Cristo morreu
debalde” se a justiça provém da obediência à Lei (Gl 2.21) [...] Em segundo
lugar, no próprio âmago do Evangelho encontra-se a verdade de que a
justificação tem sua origem na graça de Deus (Rm 3.24) e sua provisão no sangue
que Cristo derramou na cruz (Rm 5.19), e nós a recebemos mediante a fé (Ef 2.8) 3.
Lutero
ao receber a paz que vem mediante a fé escreveu: “Finalmente compreendi que a
justiça de que fala o evangelho é aquela pela qual Deus, em sua graça, nos
justifica. Imediatamente senti que renascia para uma nova vida” 4. Por ter sido fundamentada nas
Escrituras, a justificação pela fé inevitavelmente conduziu a Reforma ao
princípio de “sola scriptura” e seus desdobramentos como o “sola
gratia” (somente a graça), o “sola fides” (somente a fé) e ainda o “sola Christus”
(Somente Cristo). Todos estes princípios estão presentes na doutrina da
justificação pela fé. Em consequência, Lutero afirmava que “a doutrina da
justificação não é apenas mais uma doutrina; é o artigo fundamental da fé, pelo
qual a igreja se firmará ou cairá e do qual depende toda a doutrina”5.
Contudo,
o desenvolvimento desta doutrina culminou em divergências quanto a “mecânica da
salvação”. Este termo cunhado por Silas Daniel indica que os reformadores eram
concordes quanto à mensagem e o método da salvação, mas discordavam de temas
doutrinários acerca da eleição, predestinação, livre-arbítrio, presciência e
soberania de Deus. Ao dirimir tais diferenças, a posição pentecostal quanto à
justificação pela fé e a mecânica da salvação pode ser observada nos artigos de
fé 5, 6 e 7 do “cremos” (credo menor) das Assembleias de Deus que confessa
crer:
“Na pecaminosidade do homem, que
o destituiu da glória de Deus e que somente o arrependimento e a fé na obra
expiatória e redentora de Jesus Cristo podem restaurá-lo a Deus (Rm 3.23; At
3.19). Na necessidade absoluta do novo nascimento pela graça de Deus mediante a
fé em Jesus Cristo e pelo poder atuante do Espírito Santo e da Palavra de Deus
para tornar o homem aceito no Reino dos Céus (Jo 3.3-8, Ef 2.8,9). No perdão
dos pecados, na salvação plena e na justificação pela fé no sacrifício efetuado
por Jesus Cristo em nosso favor (At 10.43; Rm 10.13; 3.24-26; Hb 7.25; 5.9)” 6
Estas
verdades centrais presentes no “credo menor” são pormenorizadas na “Declaração
de fé” (credo maior) da seguinte forma:
“A salvação está disponível a
todos os que creem [...] A predestinação genuinamente bíblica diz respeito
apenas à salvação, sendo condicionada à fé em Cristo Jesus, estando relacionada
à presciência de Deus [...] A graça de Deus é manifestada salvadoramente
maravilhosa, perfeita; entretanto, não é irresistível [...] A
fé antecede a regeneração [...] Foi Deus quem tomou a iniciativa na salvação
[...] É por meio da graça que Deus capacita o ser humano para que ele responda
com fé ao chamado do evangelho [...] os seres humanos, influenciados pela graça
que habilita a livre escolha, são livres para escolher [...] Deus proveu a
salvação para todas as pessoas, mas essa salvação aplica-se somente àquelas que
creem [...] Nesse sentido, não há conflito entre a soberania de Deus e a
liberdade humana” 7
Como
é possível perceber no credo das Assembleias de Deus, a soteriologia (doutrina
da salvação) é concorde com a doutrina da “justificação pela fé” e com a
“mecânica da salvação” arminiana. De acordo com Silas Daniel, o ensino
arminista, quanto ao assunto, pode ser resumido do seguinte modo:
“Aquele que é salvo em Cristo
não fez nada para ser salvo, pois sua salvação foi totalmente propiciada por
Deus; ele apenas recebeu, passivamente, confiantemente e de mãos vazias, aquilo
que de graça foi feito por Deus em seu favor, algo que ele não podia fazer por
si mesmo. E ele só pode receber a salvação porque Deus, pela sua graça, ativou
seu livre-arbítrio para as coisas espirituais, sua capacidade de responder
positivamente ao chamado divino para ser salvo, a qual havia sido comprometida
após a Queda. Tudo vem de Deus” 8
Fundamentado
então nos princípios teológicos da Reforma, o credo das Assembleias de Deus
ratifica a doutrina da justificação pela fé e reconhece que tudo procede de
Deus, ou seja, a salvação por meio da fé e o livre-arbítrio para crer são
dádivas divinas, contudo, o credo assembleiano exorta que embora a salvação
seja oferecida gratuitamente a todos os homens, uma vez adquirida, deve ser
zelada e confirmada.
Pense
nisso!
Douglas Roberto de Almeida
Baptista
______________________
1SAUSSURE,
A. de. Lutero: o grande reformador. São Paulo: Vida, 2003. p. 22.
2DANIEL,
Silas. Arminianismo. A mecânica da Salvação. Rio de Janeiro: CPAD,
2017. p. 146.
3HORTON,
Stanley M. Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, 1996.
p. 373.
4SAUSSURE,
A. de. Lutero: o grande reformador. São Paulo: Vida, 2003. p. 25.
5OLSON,
Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Editora Vida, 2001.
p. 399.
6 CGADB. Declaração
de Fé das Assembleias de Deus. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 13.
7 CGADB. Declaração
de Fé. Capítulo X. Sobre a Salvação. Rio de Janeiro: CPAD, p. 63-64.
8 DANIEL,
Silas. Arminianismo. A mecânica da Salvação. Rio de Janeiro: CPAD,
2017. p. 18.